AVALIAÇÃO SOBRE O PL DO VENENO – APÓS VETOS PARCIAIS DO PRESIDENTE LULA

Avaliação dos vetos parciais do presidente Lula a PL do Veneno

Por – Larissa Bombardi (28/12/2023), integrante do IPSA

Dentre tantos outros aspectos já elencados por setores da sociedade civil organizada e demais especialistas, nós da aliança IPSA gostaríamos de ressaltar alguns elementos que consideramos da maior gravidade:

Nós entendemos que este ponto é um dos pontos mais graves e fere o Princípio de Precaução estabelecido pela Organização das Nações Unidas em diferentes convenções:

1.  Sobre a continuidade da expressão “risco inaceitável” à saúde e meio ambiente (capítulo II, Art 4º, Parágrafo 3) – “É proibido o registro de agrotóxicos … que apresentem risco inaceitável…

(https://www.pan-germany.org/download/PAN_Briefing_Precaution_060914.pdf )

• World Charter for Nature, adopted by the UN General Assembly in 1982

• [Montreal] Protocol on Substances that Deplete the Ozone Layer (1987)

• Second North Sea Declaration – Calling for Reduction of Pollution (1987)

• Nordic Council’s International Conference on Pollution of the seas (1989)

• Paris convention for the Prevention of Marine Pollution from Land-based sources

(PARCOM) (1989)

• Bergen Declaration of Sustainable Development (1990)

• Second World Climate Conference – Ministerial Declaration (1990)

• Bamako Convention on Transboundary Hazardous Waste into Africa (1991)

• Rio Declaration on Environment and Development (1992)

• Helsinki Convention on the Protection and Use of Transboundary Watercourses

and International Lakes (1992)

• Framework Convention on Climate change (1992)

• Maastricht Treaty on the European Union (1994)

• 4th North Sea Conference of Ministers (1995)

• Barcelona Convention

• United Nations Agreement on the Conservation and Management of Straddling

Stocks and Highly Migratory Fish Stocks (1995)

• UN Intergovernmental Panel on Climate Change used the precautionary principle

in concluding that “the balance of evidence … suggests a discernible human

influence on global climate” (IPCC 1995).

• Article 10 of the Cartagena Protocol on Biosafety to the Convention on Biological

Diversity (2000).

• Stockholm Convention on Persistent Organic Pollutants (2004)

• REACH (2006) – Registration, Evaluation, Authorisation and Restriction of

Chemicals – European Union

• SAICM (2006) – the Strategic Approach to International Chemicals Management,

agreed at Dubai.

In 1989, the United Nations Environmental programme recommend that “all governments

adopt the principle of precautionary action”, with regard to the prevention and elimination

of marine pollution.

De acordo com a PAN (Pesticides Action Network), no seguinte link: (https://www.pan-germany.org/download/PAN_Briefing_Precaution_060914.pdf , a Declaração das Nações Unidas na Conferência para o Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro estabelece que (em seu Princípio 15):

Em Inglês: In order to protect the environment, the precautionary approach shall bewidely applied by States according to their capabilities. Where there are threats of serious or irreversible damage, lack of full scientific certainty shall not be used as a reason for postponing cost-effective measures to prevent environmental degradation.

Em português: A fim de proteger o meio ambiente, a abordagem preventiva deve ser amplamente aplicada pelos Estados de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaças de danos graves ou irreversíveis, a falta de certeza científica total não deve ser usada como motivo para adiar medidas econômicas para evitar a degradação ambiental.

A PAN também destaca a “The Wingspread Conference”  que inclui a saúde humana em sua definição de Princípio de Precaução:

Em inglês: When an activity raises threats of harm to human health or the environment, precautionary measures should be taken even if some cause and effect relationships are not fully established scientifically.

Em português: Quando uma atividade gera ameaças de danos à saúde humana ou ao meio ambiente, devem ser tomadas medidas de precaução, mesmo que algumas relações de causa e efeito não estejam totalmente estabelecidas cientificamente.

Assim, entendemos que este ponto vai EXATAMENTE na CONTRAMÃO DO PRINCÍPIO DE PRECAUÇÃO!!

Ou seja, de acordo com o Princípio de Precaução –  estabelecido pela própria ONU, organização em que o Brasil é um Estado-Membro – nenhuma substância deveria ser autorizada se há alguma dúvida sobre seus efeitos sobre a saúde humana e ambiental, mesmo que as relações de causa e efeito não estejam totalmente estabelecidas cientificamente.

Ora, o texto aprovado é justamente o avesso disso: “serão aprovadas todas as substâncias, exceto aquelas que têm risco inaceitável”.

Além do termo ser absolutamente impreciso sob o ponto de vista jurídico e da saúde humana e ambiental, na prática, isto significará estabelecer um limite absolutamente frouxo e indefinido em que, obviamente, tudo poderá ser registrado.

No espírito do “Princípio de Precaução” não cabe “risco aceitável”. O texto anterior da Lei, portanto, trazia consigo este Princípio de Precaução, quando textualmente apontava que não seriam registradas substâncias carcinogênicas, teratogênicas, disruptores endócrinos, etc.

2.   Sobre a não revisão dos atuais LMR (Limites Máximo de Resíduos)

Aqui está o link do Codex Alimentarius (FAO) em relação aos contaminantes na alimentação humana e animal: https://www.fao.org/fao-who-codexalimentarius/sh-proxy/en/?lnk=1&url=https%253A%252F%252Fworkspace.fao.org%252Fsites%252Fcodex%252FStandards%252FCXS%2B193-1995%252FCXS_193e.pdf

Há uma lista no Codex Alimentarius com agrotóxicos e seus limites de resíduos por alimento:

https://www.fao.org/fao-who-codexalimentarius/codex-texts/dbs/pestres/pesticide-detail/en/?p_id=20

Neste caso, por exemplo, temos que o limite de 2,4-D na soja é dez vezes maior no Brasil, do que o limite estabelecido no Codex Alimentarius.

O mesmo vemos com relação ao ABAMECTIN :

Na Soja – 0,002 mg/kg (CODEX ALIMENTARIUS) (https://www.fao.org/fao-who-codexalimentarius/codex-texts/dbs/pestres/commodities-detail/en/?lang=en&c_id=293)

Na Soja –  0,01 (no Brasil – ANVISA) https://www.gov.br/anvisa/pt-br/setorregulado/regularizacao/agrotoxicos/monografias/monografias-autorizadas/a/4143json-file-1

Portanto, o limite desta substância no Brasil é: 05 vezes maior do que o limite estabelecido no CODEX! Senão agora, quando os LMR’s (Limite Máximo de Resíduos) serão revistos??

Muito embora em alguns casos o limite brasileiro seja inferior ao do Codex, pensamos que isso é resultado de conquistas da sociedade civil organizada e de pessoal técnico da ANVISA, comprometidos com a saúde humana.

Contudo, tais aberrações, como a dos exemplos acima, deveriam ser eliminadas e, nesse sentido, é mais do que necessário um encaminhamento da Lei direcionado a este ponto.

3.   Sobre o risco de boicote aos produtos brasileiros por parte da União Europeia e/ou risco ao Acordo Mercosul-União Europeia

É muito importante ter em conta que a União Europeia pode suspender o comércio com determinados países, caso um alimento importado traga risco para os cidadãos europeus:

https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=LEGISSUM:f80501

Este item entra justamente no “Princípio de Precaução” da União Europeia: European Food Safety Authority (EFSA) — ensuring safe food and animal feed in the EU”.

Diz o trecho:

Em inglês – Where food or feed presents a serious and uncontainable risk to health or the environment, the Commission’s emergency protective measures can include suspending trade in or imports of the product. EU countries may take similar measures if the Commission fails to take action.

Em português – Quando um alimento ou ração apresenta um risco grave e incontrolável à saúde ou ao meio ambiente, as medidas de proteção de emergência da Comissão podem incluir a suspensão do comércio ou das importações do produto. Os países da UE podem tomar medidas semelhantes se a Comissão não tomar providências.

Este tema foi levado ao Parlamento Europeu em abril de 2023, quando uma comissão de deputados (Eurodeputados) inquiriu a Comissão Europeia sobre quais medidas a Comissão vai tomar em relação às importações de alimentos provenientes do Brasil com resíduos de agrotóxicos proibidos na União Europeia:

https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/E-9-2023-001396_EN.html

A pergunta foi feita (a resposta está em andamento) com base na seguinte legislação europeia https://environment.ec.europa.eu/topics/chemicals/reach-regulation_en , que diz respeito ao direito de as pessoas saberem o que estão comendo:

Em inglês:

Protecting consumers –

Under REACH, consumers have the right to know whether the products they buy contain harmful chemicals. These substances are found in everyday products, and they have been linked to serious and often irreversible effects on health or the environment.  

To assist consumers, REACH introduced the “consumer right to know” in Article 33. The LIFE askREACH project helps consumers and companies apply this right. 

Upon receiving a consumer inquiry about the presence of a substance of very high concern in an article, companies are obliged to reply within 45 days.

Em português:
Protegendo os consumidores

De acordo com o REACH, os consumidores têm o direito de saber se os produtos que compram contêm substâncias químicas nocivas. Essas substâncias são encontradas em produtos de uso diário e têm sido associadas a efeitos graves e muitas vezes irreversíveis sobre a saúde ou o meio ambiente. 

Para ajudar os consumidores, o REACH introduziu o “direito do consumidor de saber” no Artigo 33. O projeto LIFE askREACH ajuda os consumidores e as empresas a aplicarem esse direito.

Ao receber uma consulta do consumidor sobre a presença de uma substância de grande preocupação em um artigo, as empresas são obrigadas a responder dentro de 45 dias.

Portanto consideramos que ambos: a omissão com relação aos HHP’s (como será apontado no próximo item) e o fim do Princípio de Precaução (implícito no novo texto), são uma ameaça às relações comerciais Brasil – União Europeia.

4.  Sobre a Omissão do PL do Veneno com relação às substâncias altamente tóxicas (HHP – Highly Hazardous Pesticides)[1] e o impacto nas crianças (embora não apenas).

Entendemos que a omissão do PL do Veneno com relação ao banimento de substâncias extremamente perigosas (HHP’s) afronta totalmente o Direito das Crianças, estabelecido pelas Nações Unidas e já mencionado – em diferentes oportunidades – por relatores das Nações Unidas para Substâncias Tóxicas e Direitos Humanos.

Aqui trago um, dentre tantos outros exemplos:

https://www.ohchr.org/en/press-releases/2017/03/pesticides-are-global-human-rights-concern-say-un-experts-urging-new-treaty

Em Inglês:

Chronic exposure to pesticides has been linked to cancer, Alzheimer’s and Parkinson’s diseases, hormone disruption, developmental disorders and sterility. Farmers and agricultural workers, communities living near plantations, indigenous communities and pregnant women and children are particularly vulnerable to pesticide exposure and require special protections.

The experts particularly emphasized the obligation of States to protect the rights of children from hazardous pesticides. They noted the high number of children killed or injured by food contaminated with pesticides, particularly through accidental poisonings, the prevalence of diseases and disabilities linked to chronic exposure at a young age, and reports on the exposure to hazardous pesticides of children working in global food supply chains, which is one of the worst forms of child labour.

Urging a new approach to farming, they say: “It is time to overturn the myth that pesticides are necessary to feed the world and create a global process to transition toward safer and healthier food and agricultural production.”

Em português:

A exposição crônica a  agrotóxicos tem sido associada ao câncer, às doenças de Alzheimer e Parkinson, à desregulação hormonal, a distúrbios do desenvolvimento e à esterilidade. Agricultores e trabalhadores agrícolas, comunidades que vivem perto de plantações, comunidades indígenas, mulheres grávidas e crianças são particularmente vulneráveis à exposição a agrotóxicos e exigem proteções especiais.

Os especialistas enfatizam especialmente a obrigação dos Estados de proteger os direitos das crianças contra agrotóxicos perigosos. Eles observaram o alto número de crianças mortas ou feridas por alimentos contaminados com tais substâncias, especialmente por meio de envenenamentos acidentais, a prevalência de doenças e deficiências ligadas à exposição crônica em uma idade jovem e relatórios sobre a exposição a agrotóxicos perigosos de crianças que trabalham em cadeias globais de fornecimento de alimentos, que é uma das piores formas de trabalho infantil.

O que é verdade no Brasil, se por exemplo, considerarmos que 18% da população intoxicada no Brasil são crianças e adolescentes de 0 a 19 anos.

Eles pedem uma nova abordagem para a agricultura: “É hora de derrubar o mito de que os agrotóxicos são necessários para alimentar o mundo e criar um processo global de transição para uma produção agrícola e de alimentos mais segura e saudável.”

Considerando que no Brasil 18% das pessoas intoxicadas são crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, as omissões e alterações do novo texto são – claramente – uma afronta ao direito das crianças.

Cabe ressaltar que no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990) é assegurado o direito à saúde como parte dos Direitos Fundamentais:

Capítulo I – Do Direito à Vida e à Saúde

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

Além dos pontos anteriores, ressaltamos:

5.     Omissão com relação à Pulverização Aérea

  • Não há uma menção sobre a proibição da pulverização aérea, que é a principal forma de contaminação ambiental e uma das principais formas de contaminação da população indígena e quilombola.

6.     Omissão com relação à validade de registro periódica

  • Não há uma menção sobre a necessidade de se estabelecer um prazo de validade de registro para agrotóxicos (os registros deveriam expirar para que as substâncias possam ser reavaliadas periodicamente).

7.     Omissão com relação às políticas de redução e controle de agrotóxicos

  • Não há um plano para a diminuição programada do uso destas substâncias, nem tampouco para a cessação de incentivos fiscais para agrotóxicos.

Pela nossa compreensão, os retrocessos evidentes na legislação protetiva ao meio ambiente e à saúde humana não podem ser aceitos pela justiça brasileira.


[1] Critérios da FAO para definição dos HHP’s:

https://www.fao.org/pesticide-registration-toolkit/special-topics/highly-hazardous-pesticides-hhp/identification-of-hhps/en/

https://www.fao.org/pesticide-registration-toolkit/special-topics/highly-hazardous-pesticides-hhp/identification-of-hhps/en/